terça-feira, 7 de julho de 2009

[Internacional] “A Grande Ilusão” de João Moreira Salles, um exemplo de jornalismo internacional


Priscila Jordão
 
priscilajordao@gmail.com

Islândia, em verdeÉ possível fazer um leitor brasileiro se interessar pela crise financeira na Islândia? Parece difícil, mas este  é o trabalho do Jornalista Internacional. João Batista Natali e Lourival Sant’anna explicaram o que é preciso para narrar ao leitor de uma cultura como funciona outra nação e fazer ele se aproximar dela sem preconceitos.

Assim como o Brasil não se resume às mulatas, a Islândia não é somente uma ilha cheia de gelo e fiordes. João Moreira Salles foi capaz de mostrá-lo numa das melhores reportagens da Revista Piauí, aplicando a maioria das dicas de Natali e Sant’anna. Podemos aprender a fazer o mesmo aplicando algumas dicas ao texto de Salles.

  • Mitologia

Dica de Natali: “Temos que tratar o país como se fossemos antropólogos para compreendê-lo melhor. Toda nação tem conjuntos de valores que se podem reduzir a mitos, questões reverenciadas culturalmente, tabus que ela evita para não correr risco de dissolução.”

Reportagem de Moreira Salles: Conta um pouco da história da Islândia, como ela foi colonizada por celtas que destruíram seus recursos naturais. Isso explica como o país só podia evoluir economicamente com a especulação financeira, não mais com extrativismo. Por basear totalmente seu sistema na especulação, a Islândia foi o país mais afetado pela crise. Contar a história do país foi importante jornalisticamente para explicar o problema atual.

Salles conta ainda que os islandeses exportaram as palavras “saga” (narrativa do século XII e XIII) e gêiser para o resto do mundo, assim como, diz uma islandesa da reportagem, exportariam “krappa” (crise). Assim o leitor pode dimensionar o tamanho da crise, palavra tão importante quando as outras duas que definem a identidade islandesa.

  • Olhar do outro e contextualização

Dica de Sant’Anna: “Tentar explicar um pouco como as pessoas de outro país agem, o que sentem, de forma que se estivéssemos lá talvez agiríamos como elas.”

Salles: Nesse processo cabe a contextualização dos acontecimentos. Salles conta como a economia islandesa era baseada principalmente na pesca e não havia grandes diferenças de renda entre a população. Com a privatização de empresas e o neoliberalismo, começou a haver desigualdade, o que envergonhava as pessoas. Quando o sistema financeiro quebrou, todos o demonizaram com uma razão: o antigo contexto. Um estrangeiro não poderia entender tão bem essa demonização e vergonha islandesa sem o contexto da antiga igualdade econômica.

Salles explica o sentimento coletivo ainda melhor ao entrevistar um brasileiro que mudou para a Islândia. Luciano Dutra habita a ilha desde 2002 e pode misturar o olhar brasileiro ao islandês, deixando a situação mais clara para o brasileiro. Dutra compara a economia islandesa a outras, dizendo que ela era uma das mais extrativistas em comparação com o resto do mundo.

  • Personagens do drama

Vila islandesaDica de Sant’anna: O valor de conversar com as pessoas envolvidas nos dramas é ver como as pessoas se sentem e ver as consequências políticas dos acontecimentos”

Salles: São entrevistados diversos islandeses envolvidos nas manifestações políticas contra o governo e colhidos depoimentos. “Vamos nos ajudar, como sempre fazemos e sairemos dessa situação como um povo melhor”, diz um empresário, o que pode indicar futura recuperação econômica. “Estamos assustados, com raiva, mas não queremos voltar ao passado. Em dois ou três anos teremos que reprivatizar os bancos e fazer tudo de novo”, depôs um jornalista.

  • +

Salles usa ainda recursos diferentes dessas dicas para atrair o leitor. Emprega uma linguagem literária e metáforas da crise econômica, uma delas um museu monumental cuja construção foi interrompida pela crise. Ele pode ser visto de qualquer lugar da capital, como um “fantasma” da derrocada econômica. Apesar de literário, o texto emprega uma apuração jornalística avançada, como entrevistas a pessoas diferentes envolvidas: economistas, populares, o líder das manifestações, exposição de declarações oficiais do governo. Há ainda o relato de piadas sobre a crise e descrição de faixas dependuradas pela capital, que ilustram melhor a situação. O texto de pode ser encontrado na edição 28 da Revista Piauí (Janeiro de 2009) e no site da revista (para assinantes).

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6 comentários:

Felipe Marques disse...

Pri, seu texto ficou show. Pena que não podemos linkar a reportagem sem arriscar um processo. É a vida, né.

Yasmin. disse...

Brilhante. É muito bom ver que a fala do Sant´Anna e do Natali fazem todo sentido na hora da contrução de uma boa matéria. Parabéns, Pri, o texto está otimo.
Adorei os links externos também.

Rafaela Carvalho disse...

Gostei muito do texto. E o caso da Islândia foi tão bombástico que, sim, vale a pena prestar um pouco mais de atenção nesse paisinho pra ver o tamanho do problema pelo qual eles estão passando. É, no mínimo, assustador.

Pedro Zambarda disse...

Ensinar cultura de outrem tem nome:

Repertório.

E as pessoas acham que o assunto por si só traz sua importância. Faz toda a diferença trazer o repertório junto com o tópico.

Fóssil disse...

Genial! Esses novos olhares sobre o jornalismo internacional (pra mim, pelo menos) foram muito interessantes. Pra quem diz que jornalismo não é arte, taí um ótimo calaboca.

Guilherme D. disse...

Eu linkava as matérias da piauí no meu blog de Linguagens IV e, até agora, não fui processado... hahaha

Muito bom o texto, Pri! Conseguiu um bom paralelo entre a fala dos jornalistas e o texto. Eu li essa reportagem assim que saiu e de fato é de um fôlego tremendo, exemplo claro de bom jornalismo!