Por Henrique Balbi henriquebalbi92@gmail.com
Um sonho possível
Nos livros de História, era a capital do império de Ciro II, da Pérsia, mas é só mencionar para vir um lugar longe do cotidiano tedioso, à Manuel Bandeira em seu poema mais pop, “Vou-me embora pra Pasárgada”, de “Libertinagem” (1930).
O clima em Pasárgada não é quente ou seco, como no Irã, a ex-Pérsia. O táxi que me leva nem liga o ar condicionado. Não se vê lixo, engarrafamento ou gente assando no asfalto para ganhar trocados indignos.
“O que o senhor vai fazer lá no hotel?”, o taxista me tirando do deslumbre. “Matéria turística, é? Precisa não, o que não falta aqui é estrangeiro aparecendo para nos contar como é maravilhoso tudo por aqui, como queriam se mudar, como é um país abençoado. De onde vem o senhor mesmo?”
Ele ri quando digo Brasil. “Igual o Bandeira, né?”. Pergunto se conhece o poema mais pop do pernambucano. “Aquilo lá é quase hino daqui. O que tem de campanha publicitária citando você não imagina... “.
Feito o check-in no (único) hotel que a Jornalismo Júnior pôde pagar, o recepcionista me responde sobre os melhores passeios: “Praça central, sem dúvida. Não há turista que venha sem conhecer o lugar onde mora o rei. Quer aproveitar a carona de um guia?”.
A guia menciona o Bandeira antes de chegarmos e informa que, ao contrário das afirmações de professores de literatura, Pasárgada representa mais para o poeta do que uma fantasia escapista para ajudá-lo a suportar a tuberculose. “Na verdade, ele foi convidado pelo rei a conhecer a região enquanto estudava na Escola Politécnica de São Paulo, alguns meses antes da tuberculose”.
Os responsáveis pelo tour no Palácio confirmam. “Veio sim, era um moço de óculos grossos. Meio calado. O rei o tratou muitíssimo bem, levou-o às fazendas da nobreza, precisava ver o sorriso do menino”, me diz o guia mais velho. E ele teve a mulher que quis na cama que escolheu? “Sinto muito, não posso lhe responder”.
Esquisito. O senhor fica antipático, diz que passei tempo demais ali. Peço desculpas pelo transtorno, vou do palácio à praça. Retomo a pergunta com algumas senhoras conversando perto de um busto de bronze do rei.
“Você não devia ter perguntado, moço. Os mais velhos não gostam de falar sobre isso, os mais novos nem sequer conhecem essa parte”, uma me diz. A outra dá uma olhada ao seu redor, rasga um papelzinho, rabisca umas letras e me confidencia: “Fale com esse professor, ele é meio inacessível, mas tem um desses sites e pode lhe responder coisas interessantes sobre essa pergunta”.
Paraíso Perdido
E foi assim que cheguei ao blog republicano mais acessado de Pasárgada. Textos do tal professor, muitas caricaturas, charges e artigos denunciando os abusos que o rei vem cometendo contra sua população.
O professor aceita uma entrevista rápida. “Você leu bem o poema do Bandeira? É quase uma mensagem cifrada. Os brasileiros não percebem o conteúdo político, acham que ele versa sobre uma Terra do Nunca. A interpretação adquire outras camadas para quem mora aqui. Na verdade, o eu lírico é um nobre de Pasárgada que, confrontando a lavagem cerebral da corte com a realidade urbana sufocante e os desmandos autoritários do monarca, resolve se juntar ao seu povo, no campo mesmo.” Digo-lhe dos anúncios publicitários que usam exaustivamente o poema. “Mas você chegou a ver que existe um pedaço censurado, certo?”
Sobre a mulher que ele quiser, na cama que escolher? “Exato. Uma das claras referências a escândalos com prostitutas pagas por conselheiros do rei para agradar artistas visitantes. Nada se ouve falar de obras feitas pelos próprios artistas de Pasárgada, as referências sempre são estrangeiros, como seu querido Bandeira. Reuni no meu blog alguns dos grandes talentos da nossa terra para que tenham espaço, afinal, se não for amigo do rei, não se aproveita nada de Pasárgada”.
E a repressão ao blog, é desprezível? Foi fácil acessar o conteúdo. “Sofremos. Fizemos uma parceria minúscula com provedores estrangeiros para que hospedassem nosso blog por algum tempo e, quando corremos risco de perder o espaço, indicamos links para que nossos leitores possam ouvir ainda a voz real de Pasárgada.”
Sem prazo ou verba para ficar mais, encerrou-se a viagem. O choque ficou na cabeça durante a volta. Imaginar aquele lugar tão cheio de paisagens incríveis como solo propício ao abuso dos poderosos dói. E os escândalos quase sem repercussão? Tanta coisa despercebida. Até o Bandeira, tão introspectivo e preso às próprias órbitas, metido nessa. Depois da experiência, “e quando eu estiver mais triste / mas triste de não ter jeito / quando de noite me der / vontade de me matar”, aonde vou?