domingo, 23 de janeiro de 2011

[Cidades] Tranquilidade constrastante


Por Paulo Favari
favaripaulo@gmail.com

“Quando fala Cedral pra mim, a minha terra, onde eu nasci, me comove muito, viu? Me comove muito. Porque aqui eu nasci, aqui eu casei, aqui eu criei meus filhos”. É assim que Germano Caetano, o barbeiro Seu Germano, com os olhos marejados, se refere à sua cidade. Ele nasceu em 1927, três anos antes de a cidade se emancipar e só se mudou da área rural, onde nasceu, para a urbana. Nunca morou em outra cidade.

Cedral é uma cidadezinha localizada a 425 quilômetros de São Paulo, capital do Estado, e a 18 de São José do Rio Preto, maior cidade da região. Com seus quase 8 mil habitantes, é daqueles lugares onde as atrações noturnas são os bailes do clube da cidade, a Festa das Nações promovida pela prefeitura e as quermesses feitas pela Igreja Católica. A paróquia, aliás, é mais velha que a cidade. Sua criação data de 1925, 5 anos antes da emancipação, 1930.

Apesar de ainda ter uma população predominantemente católica, Cedral já foi mais religiosa. Seu Germano lembra com carinho de uma tradição que já foi a marca da cidade: Folia de Reis. “Naquela época, era Folia de Reis respeitadíssima. E era, de fato, como devia ser a Folia de Reis mesmo. No quintal que era feita a festa, tinha lá determinado lugar que tinha um negócio feito de palha, uma estátua,... Então, simbolizava o nascimento de Cristo. Como até às vezes – eu assisti – tinha um bezerrinho (punham ali perto)”, comenta saudoso e complementa “e não tinha fotógrafo naquela época. Não existia que nem hoje que tem fotógrafo pra todo lado. Não tinha. Só que a gente tinha que ir lá e marcar [na memória]”.

Praça da Igreja, estátua do Cristo na entra da cidade, Campão, quadra de bocha, Avenida (o ponto de encontro dos jovens nos fins de semana). Nenhum destes lugares, pontos cedralenses característicos, têm a preferência do barbeiro. “Agora, quando eu saio do serviço, eu vou para a minha casa tomar uma cervejinha, qualquer coisa. Sento ali e fico olhando, lembrando o passado bom e o passado ruim”.

Catherine Faraguti Pereira também prefere sua casa a outros lugares. Sua relação com a cidade, porém, é outra. A jovem de 22 anos reclama da “falta de opção em todos os aspectos, principalmente em áreas como lazer e estudos”.

A malha educacional cedralense conta com três escolas, todas públicas. Uma é de ensino infantil, outra é de ensinos básico e fundamental e a terceira, ensino médio. Não há faculdades. Foi a deixa pra que Catherine se mudasse para São Paulo para cursar Arquitetura. “E o curso de Arquitetura mais próximo de Cedral não é bom”, conclui.

Já em relação a lazer, o ponto de encontro dos jovens é a Avenida Antônio dos Santos Galante, ou simplesmente Avenida, como é chamada pelos habitantes. Nos finais de semana, a quadra de maior movimento concentra pessoas até cerca de uma da manhã. “É uma cidade que dorme cedo”, define Catherine. Em dias de baile o agito vai até mais tarde, geralmente até raiar o dia.

“Mas o que eu acho engraçado lá são as fofocas da cidade”, relembra, “eu fico impressionada em como algumas pessoas conseguem saber detalhes da vida de outra pessoa”. Para Catherine, essa é uma característica de Cedral. E não está errada. Como toda pacata cidade do interior, nada escapa às paredes, árvores e ruas com ouvidos que Cedral tem. A audição apurada, inclusive, já rendeu momentos dignos de hits do YouTube.

Cedral divide opiniões, como toda boa fofoca. Uns adoram a cidade, como idosos e alguns adultos que buscam tranquilidade. Outros a odeiam, como os mais jovens, justamente por causa da tranquilidade, que julgam excessiva. É, no entanto, um desses raros e últimos lugares onde se pode deixar a casa aberta e sair andando madrugada adentro pelas ruas sem temer ser assaltado. “Essa é a história, né?!”, diz Seu Germano.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

[Arte] No mundo do papel

Por Paulo Fávari
favaripaulo@gmail.com

Ter se formado em história foi o pontapé para que Helen Ikeda se tornasse restauradora. Ela sentia que havia um vácuo de conhecimento técnico em relação ao resgate de materiais pré-históricos brasileiros. Por isso, procurou algum curso na área mas, por azar ou sorte, o único disponível ficava no México: ¡adiós, muchachos! A saída foi fazer um curso de restauração de livros e documentos, no Museu Paulista. Era 1981. Desde então, Helen e o papel são inseparáveis.

E não faltam argumentos à restauradora para defender o suporte. De acordo com ela, o papel é versátil e tão durável quanto a porcelana, a tela ou mesmo a escultura. Além disso, o material utilizado para a restauração é mais simples e agride menos a saúde. Obras de pintura a óleo, por exemplo, necessitam de solventes tóxicos como o aguarrás. Já para o papel, os solventes são a água e a água oxigenada, bem menos agressivos. Cola CMC (feita à base de celulose), papéis de diferentes gramaturas, lápis Caran D'Ache, aquarelas e giz pastel seco completam os materiais necessários para a restauração. "Tem até a fotografia, que seria uma área que eu poderia avançar, mas eu prefiro ficar só no papel. Eu gosto muito mesmo e continuo produzindo bastante", completa Helen.

Mas como se restaura um papel? Helen responde em tom professoral: “[Usa-se] Basicamente água. Para a remoção de manchas de fungo, manchas de água, sujidades de uma maneira geral. O processo em si é mais o tratamento do papel, do suporte. A estrutura do papel você consegue reforçar. Por exemplo, um rasgo você faz um reforço com a cola CMC e um papel japonês por trás, que segura. Se for uma área maior de rasgo, dependendo do tamanho do corte você faz uma velatura, que é uma colocação de papel mais fino (papel japonês) também por trás para segurar todo o suporte. Quando faltam pedaços, você coloca também o papel japonês por trás e faz a reconstituição com papel semelhante ao original no tom e na gramatura mais próxima à do papel original. Se estiverem faltando traços ou cores, você procura colocar na tonalidade mais próxima da obra em si. Os retoques, por exemplo, são feitos com lápis Caran D'Ache, aquarela, giz pastel seco,... Mas é mais para recuperar a tonalidade do conjunto, você não consegue recuperar mais o traço faltante. A assinatura você procura preservar o máximo possível e deixa intocado”. Para a remoção de manchas, usa-se a água e a água oxigenada.

Tamanho gosto pelo papel deu origem a uma situação, no mínimo, curiosa. Quando descobriu a fibra de Curauá, uma espécie de bromélia nativa do Amazonas, Helen ficou maravilhada. A fibra é mais resistente e rende mais que fibra japonesa, utilizada para fazer o papel japonês. Também mais resistente que a fibra de vidro, atualmente a fibra de Curauá é usada na indústria automobilística para fazer pára-choques e estofamentos. "São utilizadas para um fim que eu não acho muito justo para elas porque elas são lindíssimas", argumenta. Para produzir papel, encomendou 200 quilos da fibra a uma revendedora. No entanto, com receio de haver problemas no transporte fez mais uma encomenda a outra revendedora. "Só quando eles estavam vindo é que eu comecei a imaginar quanto que dava 400 quilos de fibra de Curauá". Ainda hoje, um banheiro inteiro e metades de dois quartos (o dela inclusive) estão tomados pela fibra. "Essa virou uma grande brincadeira do pessoal lá em casa porque eu não tive o mínimo senso de encontrar um depósito razoável", conta a artista em meio a risos.

Que obra você restauraria se pudesse escolher?, pergunto durante a conversa. Helen, que já restaurou obras de Mira Schendel e Gilvan Samico - expoentes nacionais -, e até mesmo uma gravura de Van Gogh, pensa um pouco e responde. "Eu acho que eu iria mais pelo lado excêntrico mesmo, de ter em mãos algum trabalho feito sob um suporte de papel de um artista chinês, por exemplo, de 5 mil, 7 mil anos atrás. Ou então de alguma tribo indígena brasileira que tenha feito alguma produção em cima de algum material que seja semelhante ao papel (bananeira, casca,...)" e completa "é muito em termos de excentricidade, de você estar tocando em uma cultura que você jamais teria acesso fisicamente se não fosse através desse material".